Doença argentina
A revista “The Economist” criou o conceito de doença
holandesa em 1977, em artigo sobre a má gestão das reservas de gás da Holanda.
Seria o efeito de descobertas ou aumento de preços de recursos naturais, que
acarretam valorização cambial, desindustrialização e realocação de fatores de
produção. Diz-se, com exagero, que há doença holandesa e supostas consequências
no Brasil, mas isso é assunto para futuras reflexões.
Agora, a semanal “The Economist” para examinar
outra doença, a argentina: o populismo que flagela o país e o atrasa há anos.
Foi assim na recente desapropriação das ações da Repsol na Yacimientos
Petrolíferos Fiscales (YPF). A presidente Cristina Kirchner a anunciou com
estardalhaço e recebeu o apoio de políticos e da população (62% a favor). Prova
de arraigado nacionalismo.
A Argentina viveu uma era de ouro entre 1880 e 1930. Em 1929,
era uma das dez maiores economias do mundo. Caiu para a 23ª posição em 2008. No
centenário da independência (1910), a renda per capita era a oitava. Despencou
para a 57ª em 2008. Em 1929, o PIB brasileiro equivalia a 77% do argentino. Em
2011, o argentino representava 17% do nosso.
Em 1909, no otimismo da época, o escritor francês Anatole
France (1844-1924) disse que, “ao iniciar-se o século XX, a Argentina ocupa no
mundo uma posição quase igual à dos Estados Unidos no começo do século XIX”. O
voto secreto foi aprovado em 1912. Em 1929, a classe média constituía a
maioria. O país era o quinto em automóveis por habitante. Com 16% da população
da América Latina, tinha 45% dos telefones e 58% dos carros. Depois da
Inglaterra, era o maior consumidor de filmes americanos.
A Argentina se transformou em celeiro do mundo. Seu êxito
decorreu de sete fatores: (1) a estabilidade política, iniciada com a
Constituição de 1853, ainda em vigor; (2) a fertilidade natural dos pampas, de
altíssima produtividade; (3) a crescente procura europeia por alimentos e
matérias-primas: (4) a energia elétrica, que permitiu a frigorificação e a
exportação de carne; (5) o navio a vapor, que diminuiu o custo de transporte;
(6) a emigração do sul da Europa entre 1880 e 1910, cujo fluxo era
proporcionalmente o triplo do observado nos Estados Unidos; (7) a atração do
capital estrangeiro, que investiu em frigoríficos e estradas de ferro, fundamentais
para a produção e a exportação de carne e trigo.
A Argentina enriqueceu sem instituições para lidar com crises
e limitar os gastos dos governos. O sistema político falhou em seu primeiro
teste, nos anos 1930, quando despencou o preço das commodities. A agricultura e
o país empobreceram. A legitimidade do governo desmoronou. Um golpe militar
contra o idoso presidente Hipólito Yrigoyen (1852-1933)porém ético e integro foi o primeiro dos
vários momentos de instabilidade e violência institucional dos anos seguintes.
A reestatização da YPF é mais um elo na cadeia de equívocos
da gestão econômica argentina há quase sete décadas
A tragédia se acentuou a partir da ascensão de Juan Perón
(1895-1974) à Presidência (1946). Perón ganhou popularidade com uma agressiva
redistribuição da renda, inclusive mediante gastos sociais. Seu governo
derrogou direitos de propriedade. Apropriou-se de parte da renda agrícola para
financiar maiores gastos públicos, desapropriações e uma industrialização
forçada. Adotou políticas industriais baseadas em subsídios e na substituição
de importações. Tudo isso criou interesses e distorções que tiveram
consequências adversas para o futuro do país. Depois de Perón, o populismo se
tornou um vívio psíquico para o argentino.
A reestatização da YPF é mais um elo na cadeia de equívocos da
gestão econômica argentina há quase sete décadas. Custa crer que um país tão
rico em recursos naturais, dotado de uma população bem-educada e de
trabalhadores qualificados, que já conheceu o sucesso, não consiga livrar-se da
praga do populismo. Daí por que até a oposição apoiou a desapropriação da
Repsol.
A Argentina está dando errado mais uma vez. A inflação, o
maior sintoma, é manipulada pelo governo. A autonomia do Banco Central morreu
com a nova lei que o vincula ao objetivo de crescimento, incompatível com a
estabilidade monetária. É triste.
A ação do governo argentino tem apoio no Brasil. Houve vivas
à desapropriação e propostas para adotarmos a mesma política econômica dos
hermanos. Somos uma nação bizarra.
O sonambulismo brasileiro
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