quarta-feira, 21 de setembro de 2016

A origem da paixão do nhambiquara com gravata italiana pelo Estado.

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No início do século XX, o Brasil apresentava-se como uma nação agroexportadora em recuperação econômica, sustentado pela exportação de café, açúcar, borracha, algodão e cacau. A crise de 1929 foi um momento de ruptura na economia brasileira, com o país paulatinamente se afastando do modelo agroexportador e passando a pensar no processo de industrialização. Até então, as poucas indústrias existentes eram têxteis, alimentos e bebidas e atendiam principalmente aos trabalhadores do setor agrário.

Decidido a transformar o país numa nação industrial, Getúlio Vargas concluiu que a iniciativa privada não era suficientemente dinâmica para, sozinha, impulsionar a industrialização. Ao mesmo tempo, o debate sobre o subdesenvolvimento de países de economia primário-exportadora começou a ganhar o centro das formulações econômicas, e uma crítica às teorias clássicas de comércio particularmente ficou em evidência: A “deterioração dos termos de troca”, segundo a qual existe a tendência dos preços dos produtos agrícolas caírem frente as manufaturas. Se realmente houver tal tendência haverá uma perspectiva de crescimento relativamente inferior das economias agroexportadoras frente às outras. Diante disso, Getúlio Vargas resolve abraçar a industrialização via Processo de Substituição de Importações (PSI).
Gosto de chamar a Teoria da Deterioração dos Termos de Troca de Teoria do Coitadismo Latino-americano. Observe no gráfico acima como os termos de troca não se deterioraram em mais de 150 anos. Toda vez que a curva estiver acima da linha vermelha, houve valorização dos termos, ou seja, valia a pena ser uma nação agrária exportadora. Mas, de qualquer maneira, a DTT serviu como pretexto para a adoção do PSI.
Vargas poderia ter adotado um modelo voltado ao comércio exterior como opção, mas preferiu o caminho seguro do PSI. O Processo de Substituição de é um processo de industrialização fechada, pois visa o atendimento do mercado interno. Além disso, ele prevê a proteção da nascente indústria nacional e o crédito subsidiado do governo para a realização do investimento. Estava nascendo o típico empresário industrial brasileiro, viciado em proteção do governo e subsídio estatal.
Mesmo com essas restrições, a industrialização brasileira teve relativo sucesso. E põe relativo nisso. Se sucesso você considera a efetiva implantação de uma base industrial então tudo certo. Mas qual foi o preço dessa industrialização? A indústria daí surgida era extremamente ineficiente, acostumada ao mercado interno cativo e a proteção estatal. O principal efeito colateral do protecionismo tupiniquim foi a inflação crônica e recorrente, que embora tenha se tornado hiperinflação somente a partir da década de 1980, sempre esteve presente no cotidiano da economia brasileira. Observe no gráfico abaixo como apenas excepcionalmente o Brasil mantém inflação abaixo de 10% antes da década de 1980 e a hiperinflação.
E como efeito secundário, mas não menos perverso desse modelo de desenvolvimento baseado nos favores do Estado foi a concentração excessiva de renda na mão de um grupo pequeno de privilegiados, geralmente composto por pessoas com acesso à burocracia estatal. Por ironia, a concentração de renda se tornaria uma das principais bandeiras políticas daqueles que defendem ainda mais a intervenção do Estado na economia.
Quando o modelo se esgotou, no início da década de 1970 e com a Crise do Petróleo em 1974, os militares tinham duas opções: fazer um ajuste para evitar o desequilíbrio externo e a inflação permanente ou manter o crescimento econômico através do endividamento externo. Os militares optaram pela segunda alternativa, mantiveram o modelo de economia fechada, recusando-se a abrir a economia para a concorrência externa e tudo o mais ficou para a história. Veio a crise da dívida em 1982, a hiperinflação e a década perdida.
O Brasil é, portanto, um país fechadíssimo ao comércio internacional. A dinâmica de sua economia está voltada para o atendimento do mercado interno e o empresário nacional é viciado em governo, resultado de décadas de dirigismo econômico e protecionismo tacanho. Portanto, não é nenhuma surpresa o atual nível de corrupção e a relação promíscua entre setor público e setor privado, que cria castas de privilegiados em ambos os lados em detrimento da imensa maioria da população.
E nesse ambiente, o setor público sente-se à vontade para impor sua agenda regulatória que asfixia a iniciativa privada e acaba aumentando a presença do Estado na economia. Foi o que presenciamos nos últimos anos, em particular a partir do momento em que Dilma Rousseff assumiu o posto máximo do país: o aumento absurdo da burocracia e a deterioração, a olhos vistos, do ambiente para se fazer negócios no Brasil.
É o que mostra o relatório Doing Busines, que segundo as palavras do próprio Banco Mundial, autor do estudo “…mede, analisa e compara as regulamentações aplicáveis às empresas e o seu cumprimento em 189 economias e cidades selecionadas nos níveis subnacional e regional ” e … “ao reunir e analisar dados quantitativos abrangentes, podemos comparar os ambientes regulatórios das atividades empresariais em várias economias ao longo do tempo. Desta forma, o Doing Busines incentiva os países a competirem para alcançar uma regulamentação mais eficiente; oferece padrões de referência sobre reformas regulatórias; e serve como uma ferramenta para acadêmicos, jornalistas, membros do governo, empresários, pesquisadores do setor privado e outros interessados no ambiente de negócios de cada país”. Ele é, assim, o melhor indicador (ou o mais “isento”, para utilizar em debates sobre Liberdade Econômica, já que o grau de Liberdade Econômica é elaborado pela Heritage Foundation) sobre ambiente de negócios. E o Brasil apareceu em 120º entre 189 países, atrás de nações como Albânia, Azerbaijão, Honduras, El Salvador, Mongólia, Namíbia, Nepal, Ruanda e Zâmbia, com óbvia tendência a deterioração desse quadro. Sorte do Brasil que o Banco Mundial não analisa legislações trabalhistas e ambientais, senão o Brasil estaria, com certeza, em situação bem mais precária.
Ou seja, fazer negócios no Brasil não é para amadores e apenas os fortes sobrevivem. O marco regulatório brasileiro, além de esdrúxulo, está sujeito a interpretações dependendo do agente do governo que faz a fiscalização ou emite autorização/alvará. E esse marco regulatório avança sobre a legislação trabalhista, ambiental, fiscal. Até mesmo no desenvolvimento de novos produtos o Estado consegue impor sua sanha regulatória e atrapalhar esse processo vital para o crescimento econômico.
A legislação trabalhista brasileira, além de anacrônica e prejudica a negociação de rotinas simples no trabalho. Um exemplo, um trabalhador com mais de 50 anos ou um menor de 18 anos é obrigado pela CLT a gozar os 30 dias de férias de uma vez. Caso ele queira dividir em dois períodos para, por exemplo, aproveitar as férias escolares dos filhos, a CLT o impede. Além disso, o empreendedor tem que conviver com mais de 2500 normas. Cada norma com um conjunto de exigências.
A legislação fiscal, então, é um convite aos porões do inferno. Segundo o RelatórioDoing Busines, o brasileiro demora 2600 horas para prestar contas ao fisco e ocupa o 177º lugar entre 189 países analisados pelos Banco Mundial. Com um conjunto gigantesco de normas, regras e guias, a burocracia tributária é tão ou mais maléfica que a própria carga tributária. O Instituto Brasileiro de Planejamento Tributário (IBPT) compilou a legislação tributária brasileira e concluiu que, se fossem impressas, resultariam num livro de 112 milhões de páginas Em 25 anos, foram criadas 320.343 novas normas tributárias e isso corresponde a 46 novas normas a cada dia útil. Podemos calcular o custo para o empresariado manter-se atualizado a esse verdadeiro manicômio regulatório a que fomos condenados.
Num caso mais recente de como os agentes do Estado estão completamente descolados da realidade, presenciamos a mudança no regime de repartição do ICMS para lojas virtuais e o relato do fechamento imediato de vários negócios, inviabilizados apenas pelo custo adicional da burocracia. Dá para imaginar abrir mão de empregos no meio da pior crise econômica da história desse país?
Poderíamos discorrer ainda sobre a burocracia ambiental, alvarás de construção ou funcionamento e outros aspectos da vida nacional regulado pelo Estado. Mas o que a burocracia tem a ver com o Processo de Substituição de Importações e o atual estado de coisas na economia brasileira? No meu entendimento, tem tudo a ver.
Porque o Paradoxo de Garschagen, segundo o qual os brasileiros odeiam os políticos mas amam o Estado também pode ser adaptado aos empresários brasileiros: Eles odeiam a burocracia e a regulação, mas amam ser protegidos pelo Estado da concorrência estrangeira, adoram créditos subsidiados e regulações que impeçam o pleno funcionamento do livre mercado. Parece que a época das grandes empresas que nasciam em garagens ficou para trás.
Em épocas de crise, vemos verdadeiras romarias do empresariado em direção à Brasília para implorar por medidas do governo de combate a crise. Essas medidas, em geral, pedem subsídios, crédito e proteção. Não vemos por parte das entidades representativas a busca incessante da agenda que realmente interessa: redução drástica da burocracia e melhora no ambiente de negócios. Porque, ao implorar pela proteção e ajuda do Estado, o empresariado nacional alimenta o monstro que acabará por devorá-lo. Ao pedir mais ajuda do governo ao invés de menos regulação, estão apenas repetindo o modus operandi do PSI. Você acha que estou exagerando? Olha o governo batendo recordes de ações antidumping. E o que fez o governo para ajudar a indústria siderúrgica nacional durante a crise econômica atual? Mais ações antidumping contra os aços chineses, fruto da pressão dos grandes grupos siderúrgicos nacionais, incapazes de fazer o que todos os milhões de pequenas empresas brasileiras precisam fazer em época de crise: aumentar a eficiência e reduzir custos. O resultado prático de medidas como essa é que, mesmo num cenário de recessão e ociosidade, a indústria siderúrgica nacional repassou o problema para o mercado, com o beneplácito do governo, seu preço continua subindo, mesmo com o aço perto de seu piso histórico.
E assim se vai moldando o capitalismo de compadres tipicamente brasileiro, onde aqueles com acesso direto ao poder de Brasília conseguem proteção do governo em troca de não atrapalhar o crescimento do tamanho do Estado. Talvez por isso, grandes empresários como Jorge Gerdau fossem vistos como conselheiros do governo mais intervencionista da história recente desse país. Para a grande maioria das empresas nacionais, sufocadas pela burocracia e sem força política para promover as mudanças necessárias, a crise econômica é uma triste realidade a ser enfrentada todos os dias. Ou iniciamos uma cruzada pelas reformas liberalizantes nesse país, ou continuaremos a assistir esse espetáculo deprimente que é o agigantamento do Estado brasileiro. Ou o país caminha para essas reformas, ou a distopia de Ayn Rand será o mais próximo que podemos descrever do Brasil do futuro.

                           Uma alta dose de realidade faz bem ao tupinambá noveleiro
                                                                

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

O SUS é de graça? ou gostamos de ser enganados.

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O mito da gratuidade do SUS

O tempo todo somos levados a acreditar que os SUS atende de graça. Este é um mito que vem sendo construído tão logo o SUS veio ao mundo. Para sua desconstrução, é necessário compreender a natureza do Estado. O Estado é um ser polimórfico, pois é composto de várias faces: uma população, um território, uma ordem jurídica soberana. E tem por fim o bem da coletividade.

A despeito da sua complexidade, uma coisa é certa e simples: o Estado não produz riqueza, não gera renda. Ele precisa do nosso dinheiro para se manter e atuar em benefício do interesse público, como determina a Constituição e a própria concepção do Estado moderno. E nós é que entregamos esse dinheiro ao Estado através, principalmente, da tributação.

É comum entendermos a tributação apenas como impostos, mas ele é apenas uma das modalidades tributárias. No Brasil, temos cinco modalidades tributárias: imposto, taxa, contribuição de melhoria, empréstimo compulsório e contribuição. Cada uma delas define uma situação que enseja a sua cobrança, pelo Estado, como parte da carga tributária. A essa situação se dá o nome técnico de hipótese de incidência tributária.

Ainda que geralmente restrita aos técnicos da área, esta é uma definição que precisa ser abordada, já que o objetivo aqui é mostrar que essas hipóteses de incidência tributária abarcam praticamente todas situações sociais experimentadas por aqueles que se encontram em território nacional.

A base tributária do Brasil é o imposto sobre o consumo. Ele é, relativamente, o tributo de maior rentabilidade ao Estado, alcançando indiscriminadamente toda a população. É chamado imposto indireto porque está embutido em produtos que consumimos. São exemplos, o IPI (Imposto sobre Produtos Industrializados) e o ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços).

No Brasil, o Estado costuma renunciar à tributação patrimonial, prática vinda desde o nosso tempo de colônia, e praticamente não há tributação das grandes fortunas. Mas a mão tributária do Estado pesa sobre o consumo, mesmo sobre aquele consumo mais básico, que a população de renda mais baixa luta para não ter que abandonar. Tributar o consumo indiscriminadamente é uma forma segura de promover a injustiça social.

Um exemplo sobre um consumo simples e prosaico pode demonstrar o tamanho da injustiça: uma família de classe média alta com renda acima de duas dezenas de salários-mínimos paga o mesmo valor tributário por um litro de leite que uma família das classes D e E, cuja a renda gira em torno de um salário-mínimo. Se levarmos em conta que a maior parte da população está submetida a uma brutal desigualdade de renda, veremos que a camada de menor poder aquisitivo paga mais impostos sobre o consumo que a camada de maior poder aquisitivo.

Podemos, pois, concluir, que quando a base tributária é indireta, baseada no consumo, os pobres participam com mais tributos, em termos relativos, na sustentação do Estado.

Praticamente não há como escapar da tributação quando ela é indireta e baseada no consumo básico. Difícil pensar numa situação onde haja zero consumo. Nem mesmo os indivíduos em situação de rua têm consumo zero. Em algum momento eles consomem. Os estrangeiros também consomem ou fazem uso dos serviços pelos quais pagam tributos.

Praticamente não há como escapar da tributação quando ela é indireta e baseada no consumo básico. Difícil pensar numa situação onde haja zero consumo. Nem mesmo os indivíduos em situação de rua têm consumo zero. Em algum momento eles consomem. Os estrangeiros também consomem ou fazem uso dos serviços pelos quais pagam tributos.

Enfim, a hipótese de incidência do imposto sobre consumo e serviços é tão ampla que é -salvo situações extremamente específicas, que possam ser levantadas- impossível não ser tributado no Brasil, mesmo estando numa situação marginalizada e sendo invisível ao Estado.

Milton Friedman, economista americano, ganhador do Prêmio Nobel de 1976, um dos principais pensadores do neoliberalismo, que fez e ainda faz a cabeça de muitos de nós até hoje, disse que “não há almoço grátis!” Esta frase é, temos que admitir, a mais pura verdade. Porém, não é verdade pelo que Friedman quis dizer, mas pelo que ele quis ocultar, ou seja, que todos pagam pelo “almoço” todos os dias de suas vidas.

O Brasil é um país de consensos. Muito mais que um país de discussões abertas e permanentes, é um país que fecha questão. Quando acerta, isso encurta caminho, mas quando erra -e é mais fácil errar que acertar, quando enveredamos por esse método- odano demora a ser percebido e, como resultado, o estrago é maior. Um exemplo de acerto dado por Miriam Leitão, em História do Futuro, foi quando construímos o consenso, há pouco mais que uma década, de que precisávamos erradicar a miséria entre nós.

Pelo menos aquela miséria profunda quase absoluta, que flagela, que coloca gente numa condição análoga a de bicho. Fizemos muito, ainda que tenhamos cometido alguns equívocos, alguns deles, inclusive, ainda não sanados, talvez porque ainda não sejam admitidos como tais. Por outro lado, um de nossos erros consensuais é aquele que nos faz crer que existe alguma coisa de graça que nos é colocada à disposição pelo Estado.

Tudo, absolutamente tudo, está pago, e se faltam recursos é preciso, antes de alegar a inconsistência da oferta do bem público, apoiada na crítica ao paternalismo do Estado, verificar se há boa gestão desses recursos, se as prioridades do governo estão consonantes aos anseios e necessidades da população. A mesma população da qual nossos eleitos e gestores receberam incumbências específicas para cumprir e devem cumprir.

Diante do abismo que há entre as prioridades dos governos e os anseios e necessidades da população, fica até difícil acreditar que nosso único problema sejam os recursos financeiros. Para se ter uma ideia é só perguntar a pessoas dos quatro cantos deste país quais as prioridades que os governos devem ter e depois comparar com as ações desses mesmo governos. É mais que provável que as respostas estejam ligadas aos temas da saúde, da educação, da mobilidade e da segurança. Aí é só avaliar criticamente se a atuação do Estado se coaduna com essas prioridades.
Evidentemente, nem sempre caberá ao Estado o papel do provedor, por vezes ele deverá ser aquele que regula, criando um ambiente socioeconômico estimulante e justo, impedindo que agentes econômicos e financeiros atuem apenas em benefício próprio, em detrimento do interesse coletivo que deve sempre prevalecer. Sendo o Brasil esse país que consensualiza, ele não tem paciência para o debate permanente, aquele que amadurece as ideias.

No processo de rápida consensualização, muitas minúcias ficam para trás, só lá na frente é que percebemos como eram importantes e determinantes no acerto dos consensos encetados. Outro risco que corremos, aliás já verificado, é o da partição da sociedade produzida pela ausência de alinhavo das diferentes correntes naquilo que elas têm em comum.

Exacerbam-se as diferenças sem perceber o que existe de coeso entre elas e que poderia ser o caminho para se chegar a uma terceira via, evitando a ruptura da sociedade como se produziu nas últimas eleições. E todo esse processo atrapalha, concorre para que a corrosão do maquinário público se acelere e as políticas públicas são seriamente prejudicadas.

Diante do exposto, afirmar a gratuidade do SUS é, além de um despropósito, algo que deva ser avaliado à luz das intencionalidades subjacentes ao discurso. Joseph Goebbels foi ministro da propaganda de Hitler. A ele se atribui uma frase que diz que uma mentira repetida à exaustão acaba se transformando em verdade. Dentro do jogo de poder, esta frase virou um princípio.

A ideia de que a assistência dada pelo SUS “é grátis” é uma legítima filha deste princípio. Além de corroborar com a noção de que o SUS é para os pobres, desconsidera o quanto é injusta a tributação no Brasil, que recai mais pesadamente sobre a parcela da população que detém menos recursos. Entre nós convencionamos associar a presumida gratuidade dos serviços públicos à carência financeira e não a um direito conquistado e, posteriormente, definido em lei.

Todos os estudos disponíveis sobre o financiamento do SUS apontam, sem exceção, para a insuficiência dos recursos para a execução das políticas públicas de saúde em quantidade suficiente e com a qualidade exigida. Em contrapartida, os estudos sobre a carga tributária brasileira são unânimes em apontar a sua elevadíssima marca, ultrapassando os 40% do PIB, segundo alguns, e próximo disso, segundo outros.

Uma carga tributária próxima a de países escandinavos, sem, no entanto, a entrega de serviços com o mesmo padrão de qualidade. Esse descompasso, entre os recursos que entregamos ao Estado, na forma de tributos, e aquilo que nos é ofertado como bens públicos, tem origem na ineficiência da gestão somada ao baixíssimo grau de representatividade dos nossos eleitos e, claro, como não poderia deixar de ser, no câncer da corrupção que se infiltrou em todo tecido social, através do seu processo de metástase.

Trocando em miúdos: também não há recursos suficientes porque eles são mal gastos, são roubados, usurpados e desviados. Mais uma vez cabe ressaltar que nada é de graça. Não existe o mitológico governo grátis que os pensadores do neoliberalismo querem nos fazer crer, através das técnicas de Goebbels. Tudo está pago e bem pago. Falta o Estado entregar o que antecipadamente já pagamos e que foi definido como prioridade pela Constituição.

O mito da gratuidade é tão deletério ao SUS e tão pertinente aos seus inimigos que é preciso destruí-lo do organismo social, como se destrói um agente patológico viral que se replica velozmente. Podemos percebê-lo em qualquer contexto social. Dos mais informais, no dia a dia da população, como também nos discursos acadêmicos, nos textos jornalísticos e, principalmente, no contexto político, onde jamais deveria ser encontrada tal verdade goebbelsiana.

Todos nós deveríamos ficar perplexos ao ouvir ou ler declarações proferidas por autoridades, inclusive nas pastas da saúde, o que é terrível, que difundem a “gratuidade” das ações do SUS. Não temos dificuldade para ouvi-las sair da boca dos chefes do Executivo das três esferas, que têm interesses óbvios na sua replicação, quase sempre em discursos histriônicos.

Só as ouvimos com naturalidade porque elas foram ditas tantas vezes que se tornaram verdades. Quem não se lembrará de ter ouvido um ministro, no passado recente da nossa história, com incontida jactância, declarar que os portadores do HIV poderiam, a partir da sua gestão, ter acesso “gratuito” às medicações retrovirais que os manteriam vivos?

Quem também não ouviu uma declaração em tom triunfal de governador ou prefeito afirmando que o novo hospital público atenderia de “graça”? Assim, o teor principal dessas declarações -o da “gratuidade” do SUS- vai sendo profundamente instalado em nosso inconsciente coletivo, estabelecendo mais um consenso entre nós.

Já que falamos tanto em consenso, devemos dizer que é um enorme contrassenso afirmar que possa haver serviços gratuitos, públicos ou não, numa economia capitalista de mercado. Num ambiente como este, nada -absolutamente nada- é de graça. Podemos ler em livros escritos por economistas neoliberais, disfarçados de livres- pensadores, coisas como “o Estado que oferece serviços públicos de saúde e educação totalmente grátis é financiado por pesada carga tributária”.
Mas, perguntamos, embora óbvio, como pode ser “grátis” se é financiado pelos tributos pagos pela população? Se esses serviços fossem cobrados, não seria pagar de novo por algo que já pagamos de antemão? Quantas vezes será preciso repetir que não pagamos diretamente pela saúde ou qualquer outro serviço público não vinculados a taxas, pagamos por esses serviços quando recolhemos nossos tributos. Ora, aonde está a gratuidade disso?

Os chamados “Direitos Sociais” são duramente criticados pelos “livres-pensadores” do mundo livre S.A., porque são entendidos como entraves à racionalidade da gestão do 1 O MITO DO GOVERNO GRÁTIS – Paulo Rabello de Castro, 2014.

Estado e não como uma conquista da sociedade. Cabe lembrar, porém, que garantir, através de políticas públicas, a qualidade de vida da população é a finalidade precípua do Estado. Se assim não fosse, não haveria necessidade do Estado e poderíamos perfeitamente viver em barbárie, num cenário de pré-advento do Estado como descrito por Hobbes.

De um ponto de vista pragmático, não há dúvida de que os tais direitos contribuem para o desenvolvimento de uma sociedade, na medida em que a população usufruindo desses direitos será mais saudável e educada, consequentemente mais produtiva.

Diferentemente do setor privado da saúde, que conta com defensores e representantes não só nas casas legislativas como nos Executivos de todo país, além de lobistas de plantão atuando na defesa de seus interesses, o SUS tem pouquíssimos representantes nas arenas políticas. Enquanto o setor privado faz prevalecer seus interesses com manobras e artimanhas legislativas, o SUS vê mitigados seus poderes a cada sessão legislativa e mesmo o Executivo ano a ano abandona os princípios do SUS.
A propalação, por autoridades governamentais, da ideia da gratuidade do SUS é uma das maneiras insidiosamente mais eficazes de solapar os alicerces que o sustentam. Atacam o SUS, pelas costas, aqueles que deveriam ser seus guardiões.

A discussão sobre o SUS precisa ser política, não no sentido da política partidária apenas, mas em sentido lato. Uma discussão disseminada por todos os espaços socializados -dentro dos espaços tradicionais de discussão como também dos espaços informais de convívio social. Só dessa forma será possível desmitificar a gratuidade do SUS, além de promover, na população, o entendimento de que as políticas públicas, dentre as quais o SUS, são um patrimônio da sociedade, não pertencendo a nenhum grupo que esteja ocupando o poder.

Por isso, exige-se transparência nos atos, participação ampla de toda sociedade nas formulações, respeitando-se as idiossincrasias regionais. No caso do SUS, é preciso garantir a sua integridade, impedindo o seu esfacelamento o que facilita enormemente que ele seja apropriado pelos grupos de poder que atuam no interior das três esferas do Estado.

De outra forma, a equação resta perfeita: o Estado acha que faz filantropia e a população pensa que é merecedora de caridade. Tudo baseado na verdade goebbelsiana de que o atendimento no SUS é gratuito.