Friederich Hayek & Ludwig Von Mises
O liberalismo é um modo de entender a natureza humana e uma
proposta destinada a possibilitar que todos alcancem o mais alto nível de
prosperidade de acordo com seu potencial (em razão de seus valores, atividades
e conhecimentos), com o maior grau de liberdade possível, em uma sociedade que
reduza ao mínimo os inevitáveis conflitos sociais. Ao mesmo tempo, o
liberalismo se apóia em dois aspectos vitais que dão forma a seu perfil: a
tolerância e a confiança na força da razão.
Em quais ideias se baseia o liberalismo?
O liberalismo se baseia em quatro simples premissas básicas:
– Os liberais acreditam que o Estado foi criado para servir
ao indivíduo, e não o contrário. Os liberais consideram o exercício da
liberdade individual como algo intrinsecamente bom, como uma condição
insubstituível para alcançar níveis ótimos de progresso. Dentre outras, a
liberdade de possuir bens (o direito à propriedade privada) parece-lhes
fundamental, já que sem ela o indivíduo se encontra permanentemente à mercê do
Estado.
– Portanto, os liberais também acreditam na responsabilidade
individual. Não pode haver liberdade sem responsabilidade. Os indivíduos são
(ou deveriam ser) responsáveis por seus atos, tendo o dever de considerar as
conseqüências de suas decisões e os direitos dos demais indivíduos.
– Justamente para regular os direitos e deveres do indivíduo
em relação a terceiros, os liberais acreditam no Estado de direito. Isto é,
crêem em uma sociedade governada por leis neutras, que não favoreçam pessoas,
partido ou grupo algum, e que evitem de modo enérgico os privilégios.
– Os liberais também acreditam que a sociedade deve
controlar rigorosamente as atividades dos governos e o funcionamento das
instituições do Estado.
O liberalismo é uma ideologia?
Não. Os liberais têm certas idéias – ratificadas pela
experiência – sobre como e por que alguns povos alcançam maior grau de
eficiência e desenvolvimento, ou a melhor harmonia social, mas a essência desse
modo de encarar a política e a economia repousa no fato de não planejar de
antemão a trajetória da sociedade, mas em liberar as forças criativas dos
grupos e dos indivíduos para que estes decidam espontaneamente o curso da
história. Os liberais não têm um plano que determine o destino da sociedade, e
até lhes parece perigoso que outros tenham tais planos e se arroguem o direito
de decidir o caminho que todos devemos seguir.
Quais são as idéias econômicas em que se baseiam os
liberais?
A idéia mais marcante é a que defende o livre mercado, em lugar
da planificação estatal. Já na década de 20 o filósofo liberal austríaco Ludwig
von Mises demonstrou que, nas sociedades complexas, não seria possível planejar
de modo centralizado o desenvolvimento, já que o cálculo econômico seria
impossível. Mises afirmou com muita precisão (contrariando as correntes
socialistas e populistas da época) que qualquer tentativa de fixar
artificialmente a quantidade de bens e serviços a serem produzidos, assim como
os preços correspondentes, conduziria ao desabastecimento e à pobreza.
Von Mises demonstrou que o mercado (a livre concorrência nas
atividades econômicas por parte de milhões de pessoas que tomam constantemente
milhões de decisões voltadas à satisfação de suas necessidades da melhor
maneira possível) gerava uma ordem natural espontânea infinitamente mais
harmoniosa e criadora de riquezas que a ordem artificial daqueles que
pretendiam planificar e dirigir a atividades econômica. Obviamente, daí se
depreende que os liberais, em linhas gerais, não acreditam em controle de
preços e salários, nem em subsídios que privilegiam uma atividade em detrimento
das demais.
O mercado, em sua livre concorrência, não conduziria à
pobreza de uns em benefício de outros?
Absolutamente não. Quando as pessoas, atuando dentro das regras
do jogo, buscam seu próprio bem-estar costumam beneficiar a coletividade. Outro
grande filósofo liberal, Joseph Schumpeter, também austríaco, estabeleceu que
não há estímulo mais positivo para a economia do que a atividade incessante dos
empresários e industriais que seguem o impulso de suas próprias urgência
psicológicas e emocionais. Os benefícios coletivos que derivam da ambição
pessoal superam em muito o fato, também indubitável, de que surgem diferenças
no grau de acúmulo de riquezas entre os diferentes membros de uma comunidade.
Porém, quem melhor resumiu tal situação foi um dos líderes chineses da era
pós-maoísta ao reconhecer, melancolicamente, que “ao impedir que uns poucos
chineses andassem de Rolls Royce, condenamos centenas de milhões de pessoas a
utilizar bicicletas para sempre”.
Se o papel do Estado não é planejar a economia nem construir
uma sociedade igualitária, qual seria sua principal função de acordo com os
liberais?
Essencialmente, a principal função do Estado deve ser a de
manter a ordem e garantir que as leis sejam cumpridas. A igualdade que os
liberais almejam não é a utopia de que todos obtenham os mesmos resultados, e
sim a de que todos tenham as mesmas possibilidades de lutar para conseguir os
melhores resultados. Nesse sentido, uma boa educação e uma boa saúde devem ser
os pontos de partida para uma vida melhor.
Como deve ser o Estado idealizado pelos liberais?
Assim como os liberais têm suas próprias idéias sobre a
economia, também possuem sua visão particular do Estado: os liberais são
inequivocamente democratas, acreditando no governo eleito pela maioria dentro
de parâmetros jurídicos que respeitem os direitos inalienáveis das minorias.
Tal democracia, para que faça jus ao nome, deve ser multipartidária e
organizar-se de acordo com o princípio da divisão de poderes.
Embora esta não seja uma condição indispensável, os liberais
preferem o sistema parlamentar de governo porque este reflete melhor a
diversidade da sociedade e é mais flexível no que se refere à possibilidade de
mudanças de governo quando a opinião publica assim o exigir.
Por outro lado, o liberalismo contemporâneo tem gerado
fecundas reflexões sobre como devem ser as constituições. Friedrich von Hayek,
Prêmio Nobel de economia, produziu obras muito esclarecedoras a esse respeito.
Mais recentemente, Ronald Coase, também agraciado com o Prêmio Nobel (1991),
tratou em seus trabalhos da relação entre a lei, a propriedade intelectual e o
desenvolvimento econômico.
Essa é a idéia sucinta de Estado liberal; mas como os
liberais vêem o governo, ou seja, aquele grupo de pessoas selecionadas para
administrar o Estado?
Os liberais acreditam que o governo deve ser reduzido,
porque a experiência lhes ensinou que as burocracias estatais tendem a crescer
parasitariamente, ou passam a abusar dos poderes que lhes são conferidos e
empregam mal os recursos da sociedade.
Porém, o fato de que o governo tenha tamanho reduzido não
quer dizer que ele deva ser débil. Pelo contrário, deve ser forte para fazer
cumprir a lei, manter a paz e a concórdia entre os cidadãos e proteger a nação
de ameaças externas.
Um governo com essas características não estaria abdicando
da função que lhe foi atribuída, de redistribuir as riquezas, eliminar as
injustiças e de ser o motor da economia?
Os liberais consideram que, na prática, infelizmente os
governos não costumam representar os interesses de toda a sociedade, e sim que
se habituam a privilegiar seus eleitores ou determinados grupos de pressão. Os
liberais, de certa forma, suspeitam das intenções da classe política e não têm
muitas ilusões a respeito da eficiência dos governos. Por isso o liberalismo
sempre se coloca na posição de crítico permanente das funções dos servidores
públicos, razão pela qual vê com grande ceticismo essa função do governo de
redistribuidor da renda, eliminador de injustiças ou “motor da economia”.
Outro grande pensador liberal, James Buchanan, Prêmio Nobel
de economia e membro da escola da Public Choice (Escolha Pública), originária
de sua cátedra na Universidade de Virgínia, EUA, desenvolveu esse tema mais
profundamente. Resumindo suas idéias sobre o assunto, qualquer decisão do
governo acarreta um custo perfeitamente quantificável, e os cidadãos têm o dever
e o direito de exigir que os gastos públicos revertam em benefício da sociedade
como um todo, e não dos interesses dos políticos.
Isso quer dizer que os liberais não atribuem ao governo a
responsabilidade de lutar pela justiça social?
Os liberais preferem que essa responsabilidade repouse nos
ombros da sociedade civil e se canalize por intermédio da iniciativa privada, e
não por meio de governos perdulários e incompetentes, que não sofrem as
conseqüências da freqüente irresponsabilidade dos burocratas ou de políticos
eleitos menos cuidadosos.
Finalmente, não há nenhuma razão especial que justifique que
os governos se dediquem obrigatoriamente a tarefas como transportar pessoas
pelas estradas, limpar as ruas ou vacinar contra o tifo. Tais atividades devem
ser bem executadas e ao menor custo possível, mas seguramente esse tipo de
trabalho é feito com muito mais eficiência pelo setor privado. Quando os
liberais defendem a primazia da propriedade não o fazem por ambição, mas pela
convicção de que é infinitamente melhor para os indivíduos e para o conjunto da
sociedade.
Em inglês a palavra liberal tem aparentemente um significado
diverso do que aqui se descreve. Em que se diferencia o liberalismo
norte-americano daquilo que na Europa ou na América Latina se chama de
liberalismo?
O idioma inglês se apropriou da palavra liberal do espanhol
e lhe deu um significado diferente. Em linhas gerais, pode-se dizer que em
matéria de economia o liberalismo europeu ou latino-americano é muito diferente
do liberalismo norte-americano. Isto é, o liberal norte-americano costuma tirar
a responsabilidade dos indivíduos e passá-la ao Estado. Daí o conceito de
estado de bem-estar social ou “welfare state”, que redistribui por meio de
pressões fiscais as riquezas geradas pela sociedade. Para os liberais
latino-americanos e europeus, como se viu antes, esta não é uma função
primordial do Estado, pois o que se consegue por essa via não é um maior grau
de justiça social, mas apenas níveis geralmente insuportáveis de corrupção,
ineficiência e mau uso de verbas públicas, o que acaba por empobrecer o
conjunto da população.
De qualquer forma, o pensamento dos liberais europeus e
latino-americanos coincide com o dos liberais norte-americanos em matéria
jurídica e em certos temas sociais. Para os liberais norte-americanos, europeus
e latino-americanos o respeito das garantias individuais e a defesa do
constitucionalismo são conquistas irrenunciáveis da humanidade.
Qual a diferença entre o liberalismo e a social-democracia?
A social-democracia realça a busca de uma sociedade
igualitária, e costuma identificar os interesses do Estado com os dos setores
proletários ou assalariados. O liberalismo, por seu turno, não é classista e
sobrepõe a seus objetivos e valores a busca da liberdade individual.
Em que se diferenciam os liberais dos conservadores?
Embora haja uma certa coincidência entre liberais e
conservadores no que se refere à análise econômica, as duas correntes se
separam no campo das liberdades individuais. Para os conservadores o mais
importante é a ordem; já os liberais estão dispostos a conviver com aquilo de
que não gostam e são sempre capazes de tolerar respeitosamente os
comportamentos sociais que se afastam dos padrões das maiorias. Para os
liberais, a tolerância é a chave da convivência, e a persuasão é o elemento
básico para o estabelecimento das hierarquias. Essa visão nem sempre prevalece
entre os conservadores.
Em que se diferenciam os liberais dos democrata-cristãos?
Mesmo quando a democracia cristã moderna não é confessional,
uma certa concepção transcendental dos seres humanos aparece entre suas
premissas básicas. Os liberais, por sua vez, são totalmente laicos e não julgam
as crenças religiosas das pessoas. Pode-se perfeitamente ser liberal e crente,
liberal e agnóstico ou liberal e ateu. A religião simplesmente não pertence ao
mundo das preocupações liberais (ao menos em nossos dias), embora seja
essencial para o liberal respeitar profundamente esse aspecto da natureza
humana. Por outro lado, os liberais não compartilham com a democracia cristã
(ou, pelo menos, com algumas das tendências que se abrigam sob esse nome) um
certo dirigismo econômico que normalmente é chamado de social-cristianismo.
Um gênio incompreendido