As ideias liberais não vingam no Brasil
Os detratores do liberalismo
conseguiram a proeza de responsabilizá-lo por todos os males, como se alguma
vez ele tivesse sido real. em nosso país, a idéia de socialismo guarda uma aura
quase religiosa. Ela veio a ser identificada a uma sociedade perfeita, em
relação à qual todas as demais seriam imperfeitas, em particular o capitalismo.
Sob a batuta de tais idéias, o estado custeado por 40 % do PIB em impostos, ganha em tamanho, gastos e onipotência
Em 1811-12, foi publicado no
Brasil, pela Imprensa Régia, A Riqueza das Nações, de Adam Smith. É como se
essa obra-mestra tivesse acompanhado a corte de Dom João VI quando chegou ao
nosso país. Muito tempo passou desde então e, no entanto, o liberalismo
continua claudicante entre nós. Os seus valores, como individualismo, mérito,
valorização do trabalho e igualdade perante a lei, permaneceram vagos ou
desnecessários, quando não considerados simplesmente contrários a uma abstrata
noção de igualdade social. Dois séculos depois, ele foi declarado morto, sem
que, porém, tivéssemos feito a sua experiência.
Os seus detratores conseguiram a
proeza de responsabilizá-lo por todos os males nacionais, como se alguma vez
ele tivesse sido real. Trata-se de uma questão metafísica, no sentido
pejorativo do termo: critica-se uma entidade inexistente e ela se torna, assim,
a causa de todo o existente. A proeminência política de tal postura,
politicamente bem-sucedida, se traduziu pelo fato de que o imaginário
sócio-político e a opinião pública foram capturados pela idéia de que uma
alternativa liberal não é possível, como se o Brasil devesse se contentar com
as experiências não liberais vigentes. Logo, pede-se mais do mesmo, fazendo-se
da mesmice a redenção de todos os males que nos assolam.
Os valores do individualismo,
como o empreendedorismo, a busca da realização pessoal, a aposta no risco, a
diferenciação dos ganhos e o mérito, enquanto algo moralmente digno, foram
relegados a uma posição secundária ou, ainda pior, tornaram-se os responsáveis
de fracassos econômicos, sociais e políticos, sem que eles, contudo, tivessem
jamais entrado verdadeiramente em pauta. Foram declarados politicamente como
valores de "direita", que, por isso mesmo, deveriam ser
menosprezados. O atraso ganhou carta de cidadania como se fosse a verdadeira
novidade e a modernidade foi postergada para um futuro incerto.
A esquerda e, em particular, o
PT, foram particularmente hábeis em formar um imaginário avesso a qualquer
idéia de modernização. Exemplo particularmente eloqüente encontra-se na vitória
de Lula, na última eleição. O segundo turno mostrou, com todo o vigor, o quanto
idéias são fundamentais para a orientação da ação. Quando a equipe vitoriosa
suscitou o problema das privatizações, o candidato Geraldo Alckmin ficou
completamente desorientado, não sabendo o que nem como responder. Naquele
momento, selou o seu destino. Posteriormente, o marqueteiro de Lula, João
Santana, numa entrevista à Folha de S.Paulo, reconheceu que ele apostou numa
idéia arraigada na opinião pública, fruto, aliás, de um longo trabalho petista
de crítica acirrada às privatizações realizadas durante o governo Fernando
Henrique. Soube ele extrair os resultados dessa avaliação.
Perguntado sobre o que realmente
pensava das privatizações, respondeu, paradoxalmente, que elas foram um
sucesso, sobretudo na área de telecomunicações. Esse exemplo mostra a
importância de um trabalho centrado na formação da opinião pública enquanto
condição de uma vitória eleitoral.algo que os partidos conservadores ainda não se atentaram. Idéias precisam ser elaboradas e passadas
para os cidadãos, de tal maneira que surja uma nova mentalidade, capaz de
conduzir uma sociedade no caminho de sua renovação. Se idéias atrasadas
imperam, a sociedade não avançará. Se idéias progressistas passam a predominar,
a sociedade pode ter um novo amanhã. O surgimento de uma nova mentalidade
depende de uma atuação sobre os pontos sensíveis do imaginário político-social.
Daí surgem os instrumentos que permitem operar sobre a realidade. Idéias são
guias da ação, norteiam o voto e orientam a atuação estatal e política.
O liberalismo tornou-se um
palavrão, uma ideia que deveria ser exorcizada segundo a visão esquerdista predominante por aqui.
Ora, o liberalismo tornou-se um
palavrão, uma ideia que deveria ser exorcizada. O exorcismo apresenta-se sob a
forma de um termo que se tornou usual como se evidente fosse, embora, em si
mesmo, nada signifique: o "neoliberalismo". A rigor, o
"neoliberalismo" não existe, senão na fala dos seus detratores.
Criou-se uma entidade fictícia que termina funcionando como uma espécie de bode
expiatório. Quando esse tipo de esquerda procura denegrir alguém, chama-o de
"neoliberal". É como se nada mais necessitasse ser dito, sendo apenas
suficiente repetir o mesmo termo quantas vezes fosse necessário. A monotonia
desse discurso só cessa com a pergunta: será que o neoliberalismo existe?
O que existe são regimes
capitalistas que se desenvolveram sob a égide de princípios liberais: a
liberdade econômica, o respeito à propriedade privada e aos contratos, a
livre-iniciativa, a valorização do indivíduo, de sua capacidade de livre
escolha, o apreço pelo mérito, o estado de direito, a liberdade religiosa, a
liberdade de pensamento e expressão, a liberdade de organização sindical e a
liberdade de participação política. Os regimes que questionaram esses
princípios, relativizando a propriedade privada, são os que desembocaram na
supressão total das liberdades, na onipotência do Estado e na aniquilação de
uma boa parte de suas populações. Onde o socialismo se realizou, a humanidade
foi totalmente deformada, tornando-se mesmo irreconhecível nos campos de
reeducação, que eram campos de concentração.
Contudo, em nosso país, a ideia
de socialismo guarda uma aura quase religiosa. Ela veio a ser identificada a
uma sociedade perfeita, em relação à qual todas as sociedades existentes seriam
imperfeitas, em particular o capitalismo. Este último regime não teria,
efetivamente, como se contrapor ao reino de Deus. Por definição, a criatura é
inferior ao criador. Cabe, no entanto, a pergunta: por que não comparar as
sociedades socialistas existentes ou que existiram com as sociedades
capitalistas, as que terminaram progressivamente realizando os valores do
liberalismo? Tal comparação mostraria, sem dúvida, a superioridade inconteste
do capitalismo sobre o socialismo. Sociedades tais como a americana, a inglesa,
a francesa, a italiana e as nórdicas, quando comparadas com a antiga União
Soviética, países socialistas do Leste europeu, Cuba, Camboja e outros, mostram
os termos reais da comparação.
Onde está o
"neoliberalismo"? Na cabeça dos que criaram essa idéia. Trata-se de
um mero artifício retórico. Como a esquerda ficou órfã depois da queda do muro
de Berlim, ela criou um factóide que pudesse orientar a sua ação política e
capturar a mente dos incautos. A operação foi tão bem-sucedida que o uso dessa
palavra tornou-se um xingamento, obrigando os assim identificados a um processo
de defesa do que, a rigor, não existe! Os termos do debate ficaram, então,
circunscritos a um espaço de interlocução ditado por uma esquerda que produz
desacertos constantes no mundo real, mas consegue sair vitoriosa no campo das
idéias.
A LÓGICA PERVERSA DO
ANTILIBERALISMO
Sob a batuta dessas idéias, a
sociedade civil brasileira tem visto o seu campo de atuação cada vez mais
restringido, enquanto o Estado ganha em tamanho, gastos e onipotência, como se
ele fosse capaz de resolver todos os problemas sociais. Os impostos avançam
céleres, os contribuintes progressivamente perdem recursos e, de modo geral, a
sociedade pouco progride. Termina-se produzindo uma relação de subordinação, como
se coubesse à sociedade servir ao Estado, e não este àquela. Não podemos
esquecer, embora isso seja comum no Brasil, que impostos, contribuições e taxas
são nada mais do que transferências de propriedades em proveito de uma entidade
estatal que, com esses recursos impostos ao conjunto dos contribuintes, deveria
oferecer serviços públicos correspondentes. Os indivíduos e as empresas vêem-se
despossuídos de bens seus que poderiam ser valorizados, na perspectiva da
liberdade de escolha, do empreendedorismo e dos investimentos.
No entanto, há uma lógica,
acalentada pelo Estado, de que ele seria capaz de suprir às necessidades
sociais. Os indivíduos, por seus méritos e trabalho, seriam incapazes de
fazê-lo. Os cidadãos, por sua vez, são capturados por esse imaginário e pedem
cada vez mais ao Estado que atenda às suas reivindicações, como se outra
alternativa, baseada no individualismo, não se apresentasse. Lula, em
particular, ganha as eleições presidenciais ancorado nessa concepção de Estado,
aumentando o assistencialismo social com o Bolsa Família e criando, dessa
maneira, uma clientela política específica. A perversidade reside em que os
eleitores aumentam suas demandas e expectativas em relação ao Estado, enquanto
a sociedade é exaurida progressivamente por impostos. As demandas sociais, por
sua vez, são apenas mitigadas por essas políticas assistencialistas. Nada
parece romper esse círculo vicioso, como se um outro caminho, baseado no
fortalecimento da sociedade, na livre escolha dos cidadãos e no
empreendedorismo, fosse inexistente.
Cabe ressaltar que esse círculo
vicioso há muito acompanha a vida brasileira. Para remontar a apenas algumas
décadas atrás, ele impregna toda a era getulista e o populismo em geral, assim
como se fez presente no governo Jango e nas propostas de Brizola. Não é uma
mera coincidência que o Lula e Dilma governaram o Brasil, retomando vários traços do
getulismo, como a liderança carismática, o atrelamento dos sindicatos ao Estado
e a manutenção das legislações trabalhista e sindical. No entanto, convém
igualmente frisar que essa concepção do Estado impregnou boa parte do regime
militar também- com exceção do governo do marechal Castelo Branco -, em particular no
governo Geisel, como se o Estado tivesse a tarefa de ser ele próprio um
empresário, devendo desconfiar de uma sociedade e de empreendedores incapazes
de, pelo mercado livre, promover o crescimento econômico e o desenvolvimento
social. O liberalismo deveria desaparecer do horizonte.
Quando o PT se alça ao poder, ele
o faz deitando raízes nessa tradição da história brasileira, mas nela fazendo
um enxerto de monta: a introdução do marxismo enquanto referência teórica e o
projeto de fazer do Estado assim transformado um instrumento de criação de uma
sociedade socialista. O marxismo converge pontualmente com o populismo e uma
faceta do regime militar, embora seus princípios sejam diferentes. Deve-se,
neste sentido, atentar para o fato, em geral pouco observado, de que há uma
convergência muito grande entre o PT, os movimentos sociais e setores
governamentais, como o Ministério do Desenvolvimento Agrário (Incra e Ouvidoria
Agrária Nacional), a Funai e o Ministério do Meio Ambiente (Ibama, com sua
corrente ecossocialista). E é nesta articulação que se faz presente o projeto
socialista, avesso a qualquer forma de valorização do indivíduo e de sua
capacidade de livre escolha. À força de se assinalar a postura
"neoliberal" do atual governo na área da política econômica, perde-se
de vista todo um processo em curso que concerne à relativização da propriedade
privada, ao desrespeito aos contratos e à insegurança jurídica - e criminal -
crescente.
O PRECONCEITO
É parte constitutiva de uma
sociedade organizada segundo princípios liberais que os indivíduos, ao agirem,
busquem o seu contentamento pessoal. A realização dos desejos, a livre escolha
dos seus objetos e a satisfação dos interesses particulares são inerentes à
natureza humana, só podendo ser extirpados sob a égide de uma democracia
totalitária, que procura remodelar o ser mesmo do homem.
O liberalismo parte precisamente
da consideração do homem enquanto indivíduo livre em seu processo de escolha de
si, de tal maneira que o proveito de seus esforços resulte em benefício
próprio, sem que ele tenha de se envergonhar daquilo que faz. A vida privada,
para ele, deve permanecer ao abrigo de ações políticas que possam afetá-la.
Nasce daí um jogo de livre interação que tem, no mecanismo de troca, uma de
suas condições. O mercado torna-se, assim, a expressão de relações que atendem
às demandas individuais de uma forma impessoal, pois não é necessário que
pessoas se conheçam para que seus produtos de trabalho sejam comercializados.
Numa sociedade globalizada, o parceiro e o competidor podem ser, como são,
indivíduos e grupos de outros países. As regras e leis de uma sociedade desse
tipo devem necessariamente obedecer a princípios de impessoalidade,
universalidade e imparcialidade, não suscitando nem criando privilégios que só
podem ser benéficos para alguns. Privilégios, por exemplo, são leis que só servem
para pessoas ou grupos determinados, de empresários ou trabalhadores, tendo
perdido sua validade universal.
Isto significa que todos são
iguais perante a lei, qualquer favorecimento constituindo um privilégio que
desiguala os indivíduos entre si. Cotas raciais, por exemplo, seriam leis que
não corresponderiam a esses critérios do que deveriam ser as leis, por criarem
situações de benefício a alguns em detrimento de outros. Neste sentido,
sociedades baseadas no liberalismo são sociedades que produzem a desigualdade
material, pois os esforços e as iniciativas de cada um são necessariamente
distintos. Os méritos e talentos devem ser diferentemente recompensados. A
natureza humana não tende à igualdade social. Tomemos a seguinte máxima de Marx
à luz desse posicionamento: "de cada um segundo as suas capacidades, para
cada um segundo as suas necessidades".
RARO EXEMPLAR A primeira versão
brasileira de A Riqueza das Nações, de Adam Smith, editada em 1811, leva o selo
da Impressão Régia. Acima e à esquerda, tomo 1 dos três da edição original
pertencente à biblioteca de José Mindlin
No imaginário sócio-político
nacional, o lucro é considerado uma coisa "feia". É como se
empresários e cidadãos em geral devessem se sentir envergonhados de seu
trabalho e de seus frutos, como se a satisfação do desejo devesse ser
interditada. É evidente que uma sociedade travada por esse tipo de idéia estará
truncada em seu desenvolvimento. Tal ambiente de idéias é particularmente
propício ao aumento de impostos, como se lucros menores devessem produzir uma
satisfação moral. Tal ambiente é também propício ao progresso de concepções
socializantes e coletivistas, que apostam em uma transformação política por
intermédio do aparelhamento partidário do Estado. Neste sentido, o Brasil
encontra-se numa encruzilhada.
A aversão pelo lucro origina-se
em uma concepção religiosa segundo a qual a satisfação pessoal é algo
pecaminoso. O motor mesmo de uma sociedade capitalista é considerado como algo
que pode ser apenas tolerado e, mesmo assim, sob severos limites. Enraíza-se
aqui uma concepção moral que esmera-se em interpor obstáculos ao
empreendedorismo, ao mérito e à livre escolha. O Vale do Silício, nos Estados
Unidos, não teria podido se desenvolver se essas características da
livre-iniciativa e do ganho não tivessem sido valorizadas. Muitas vezes, é
apenas uma garagem a origem de uma grande empresa.
Ora, essa concepção religiosa
veio a se traduzir politicamente por uma atuação equivocada da Igreja, que criou e
valorizou a Comissão Pastoral da Terra (CPT), que, por sua vez, engendrou o
MST. Os santos mudaram de nome. Passaram a se chamar Che Guevara e Fidel
Castro, como se o país pudesse, assim, entrar no caminho da redenção. O
marxismo une-se aqui a uma vertente brasileira do catolicismo infelizmente, numa comum
cruzada contra o liberalismo. O Juízo Final já estaria feito: o socialismo
eliminaria, por toda a eternidade, o capitalismo e sua doutrina liberal! A
estrada dos justos e dos eleitos estaria, enfim, pavimentada.
O CERCO À PROPRIEDADE
Não há sociedade livre que não se
assente no fortalecimento da propriedade privada. Todas as tentativas
históricas de relativizá-la desembocaram no autoritarismo ou em democracias
totalitárias. A liberdade de escolha só pode se desenvolver lá onde a
propriedade privada é assegurada. Se os contratos são desrespeitados, se os
proprietários não possuem nenhuma segurança no que concerne ao fruto de seu
trabalho, aos seus investimentos psicológicos e materiais, a liberdade em geral
está ameaçada. Todo discurso que procura desmerecer a liberdade econômica, como
se ela fosse prescindível do ponto de vista da liberdade civil e política é, se
não um engodo, uma tentativa de suprimir a democracia.
No entanto, o Brasil apresenta,
hoje, um curioso cenário em que, sub-repticiamente, a propriedade privada está
sob ameaça e, com ela, as relações políticas fundadas na liberdade. Enquanto o
foco do mercado financeiro está na política econômica e na independência
operacional do Banco Central, uma série de ações em curso está relativizando a
propriedade privada. E elas têm certo apelo junto à opinião pública, porque se
apresentam sob o manto da justiça. Elas respondem pelo nome de funções da
propriedade: a social, a racial, a indígena e a ambiental, sendo aplicáveis
para os meios urbano e rural.
A função social da propriedade é
aquela que se materializa em ações do MST, da CPT, do MLST, do MPA e de outras
organizações congêneres, através de invasões, cárceres privados, eliminação do
gado, destruição de tratores e instrumentos de trabalho em geral. Os
proprietários atingidos encontram-se desamparados frente a auto-intitulados
"movimentos sociais", que têm como objetivo, na verdade, a destruição
da economia de mercado, do estado de direito, visando a implantação do
socialismo. Sua bandeira reside na luta contra o "agronegócio", forma
da propriedade capitalista rural. O empreendedorismo, o trabalho e o mérito
deveriam ser penalizados. Sua finalidade consiste na eliminação das liberdades e
da democracia representativa, empregando, para isso, o discurso contra o
"neoliberalismo".
NUNCA FOMOS LIBERAIS
Segundo o economista Marcos
Fernandes, nosso liberalismo ficou restrito às elites pensantes
Para Marcos Fernandes, economista
da Fundação Getulio Vargas, as raízes históricas da inexistência de um
liberalismo autêntico no País são antigas. "Do ponto de vista político,
nunca houve uma universalização de fato dos direitos democráticos, privilégios
que ficaram restritos a um estamento estatal, e aos aliados das
oligarquias", diz ele, ecoando a teoria proposta por Raymundo Faoro ainda
no início dos anos 90: "Os direitos democráticos nunca se tornaram
universais na prática". Além disso, foi o Estado brasileiro quem pariu o setor
econômico, primeiro nos anos 30, depois com Juscelino, e finalmente, com os
militares. Em todos os casos, foram iniciativas que partiram de cima.
"Nossos exemplos históricos de liberalismo são muito dúbios. A oligarquia
paulista do café se dizia liberal. Mas era uma classe agrária dependente da
exportação de commodities e, em grande parte, do governo".
Da matriz, Portugal, diz
Fernandes, já herdamos a esquisitice: foi Pombal, um homem do Estado, e não um
revolucionário das classes excluídas, o grande representante do liberalismo
político. "Lá, a revolução liberal foi feita de baixo para cima",
diz. "Enquanto isso, no Brasil, a ideologia ficou restrita a uma elite
muito distante do que era realmente a população brasileira." Joaquim Nabuco
e Ruy Barbosa aprenderam os ideais republicanos nos livros franceses que liam
nos seus cursos de direito. Mas um mundo separava os livros da realidade. E
para ilustrar nossa esquizofrenia em relação ao tema, basta lembrar o exemplo
de Roberto Campos (1917-2001), economista e ministro do Planejamento do governo
Castelo Branco, que teve enorme influência na formação do pensamento econômico
brasileiro. "Nosso teórico mais liberal foi ministro de um governo militar
extremamente dirigista", lembra Fernandes. "Isto é típico de um país
onde o Estado foi o parteiro da sociedade civil. É difícil imaginar um
pensamento liberal genuíno aqui. Nossos liberais foram lunáticos que viviam com
a cabeça na França ou nos Estados Unidos." Alguma chance de reconciliação?
"Estamos com 500 anos de atraso. Mas a revolução tecnológica pode nos
salvar."
O LIBERALISMO E A IGUALDADE CIVIL
Um atentado cometido contra a
propriedade privada equivale a um atentado contra a liberdade. Se uma sociedade
como a brasileira, vítima de ações sistemáticas contra a propriedade privada no
campo e na cidade, não consegue assegurar a posse, ela se torna refém de atos
que procuram, na verdade, destruir a própria liberdade, embora, aparentemente,
se apresentem sob o manto da justiça social. Essa cobertura significa somente
que os objetivos velados da violência revolucionária permanecem escondidos - no
caso, a implementação do socialismo, do autoritarismo.
Para o liberalismo, a igualdade
significa igualdade cívica e não igualdade social, que se mediria, por exemplo,
por uma simetria de salários ou de rendimentos para todos. A verdadeira
cidadania é aquela que se obtém quando todos são iguais perante a lei, sem os
privilégios obtidos por intermédio do nascimento ou dos costumes. Isso
significa a impessoalidade dessa relação civil, pois não está baseada em
relações pessoais que privilegiariam uns em detrimento de outros. Uma sociedade
em que a observação da lei depende de relações pessoais é uma sociedade
privilegiada no pior sentido do termo, porque diferencia os cidadãos, fazendo a
lei valer para alguns e não para todos.
Insistamos no ponto segundo o
qual a igualdade civil se caracteriza por ser impessoal, não dependendo de
favores pessoais. A burocracia brasileira,constituída em grande parte por cidadãos concursados, sem valores republicanos, por sua vez, é um exemplo de como a
igualdade civil não vigora plenamente em nosso país, na medida em que as
relações pessoais terminam imperando, em detrimento do reino impessoal da lei.
Não é um favor que uma determinada regra seja cumprida, mas um direito do
cidadão. Os direitos civis são efetivamente exercidos lá onde uma mesma lei,
uma lei comum, geral e abstrata, é válida para todos. Se um Estado é
esquartejado em sua legislação, oferecendo privilégios e direitos exclusivos a
uns, e os subtraindo dos demais, ele faz com que a coisa pública venha a ser
apropriada por uma minoria.
A burocracia é um exemplo de como
a igualdade civil não vigora
O mérito, valor básico do
liberalismo, é menosprezado entre nós, valendo apenas parcialmente em
determinados setores da administração pública e da vida empresarial. Aquilo que
uma pessoa conquista por si mesma é um valor seu que deveria ser reconhecido
por todos, podendo se traduzir pela estima social, por bens e propriedades. A
sociedade, sob esta perspectiva, é diferenciada pelo valor das pessoas, não
sendo indiferenciada pela igualdade de salários, onde, independentemente do
esforço, do valor e do mérito de cada um, todos receberiam os mesmos
rendimentos. A indiferenciação social muito comum no Brasil produz uma sociedade de preguiçosos, que
desprezam o mérito e o valor individual, imperando a mediocridade do coletivo.
Os talentos se desenvolvem numa sociedade de livre concorrência.
Se há um direito
indissociavelmente vinculado ao da propriedade é o direito de querer, o direito
que cada um tem de dispor de si mesmo em todos os níveis subjetivos e
objetivos, fazendo com que a liberdade de escolha seja o princípio mesmo da
ação individual. Eis por que, nas democracias totalitárias, a abolição da
propriedade privada é a condição mesma através da qual o querer dos indivíduos,
dos súditos, vem a ser controlado e moldado pelo Estado. No momento em que os
indivíduos são, por assim dizer, suspensos à vontade do Estado, eles não têm
mais direitos a ser exercidos, mas tão só obrigações, apresentadas como deveres
coletivos. A estatização dos meios de produção e da propriedade privada visa
alienar o indivíduo de si mesmo, de forma que ele venha a perder a propriedade
de si. Ele se torna propriedade do Estado.
A igualdade civil é uma forma de
igualdade, sob o aspecto da igualdade de todos perante as leis, na medida em
que o conjunto dos indivíduos é dotado dos mesmos direitos. Daí não se segue, entretanto,
que todos tenham o mesmo número de bens ou o mesmo valor, no que diz respeito a
propriedades. Isto é, todos devem ter o mesmo direito à propriedade, embora a
condição seja que a propriedade de cada um se diferencie da dos demais.
Estabelece-se o princípio de uma República de proprietários, que, enquanto tal,
graças ao exercício do direito de propriedade, faz com que cada um utilize o
seu direito de querer, a sua livre escolha, o desdobramento de seus talentos e
o esforço de seu trabalho em busca dos bens que lhe derem maior satisfação.
A desigualdade das propriedades
nasce do exercício mesmo do direito de propriedade. Uma República de
proprietários é uma república de iguais, do ponto de vista dos direitos civis,
e de desiguais, do ponto de vista social.
A classe empresarial tupinambá e sua aversão ao liberalismo econômico
A classe empresarial tupinambá e sua aversão ao liberalismo econômico